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Amor & Terror Não Tem Idade 1

1672 palavras | 3 |4.47
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A estrada de terra escura levava à cidade de Três Moinhos, interior do Rio Grande do Sul. Era a mesma de antes, com barrancos e gramados, vacas, cercas baixas, e pastos a perder de vista. Não voltava à cidade de minha infância desde dez anos antes, para um velório de um amigo, esse, dos poucos que tinham sobrado do ensino médio.

Quando alcancei o centro da cidade, vi as casas de madeira, as telhas de barro, e as raras residências de alvenaria, com as pinturas gastas, acinzentadas, do tempo das mais pobres memórias que guardo, foi como voltar ao passado.

Cheguei numa madrugada fria, o carro havia sido alugado em Porto Alegre, um Honda do ano. Não parei na pousada, fui direto para fazenda Crescente, além dos dois rios, num bosque de eucaliptos onde vi as primeiras corujas, essas, comuns a muitas das minhas recordações. Diferente do passado, sofrido e imundo, nessa volta eu era rico, já aposentado de uma carreira de sucesso como médico residente no Santa Clara, o mais antigo hospital do estado.

Fui um homem comum, essa era a minha conclusão na velhice. Casei duas vezes, uma bem novo, ainda com dezenove. Sara foi minha primeira esposa, a qual conheci quando a mesma tinha apenas doze anos, loirinha, como boneca na pele rosada, nunca me respondeu mal, uma graça, como jamais encontrei semelhante. A segunda vez que troquei votos eu já era viúvo há quinze anos. Incrível como me deixei levar, uma boceta adolescente pode levar o mais sábio dos homens à mais porca ruína financeira, essa, tão conhecida pelos menos dotados de inteligência.

Não fosse um conhecido meu, policial honrado que precisava pagar as contas da filha, vítima de um câncer raro no cérebro, talvez eu tivesse voltado para Três Moinhos exatamente como saí…

Mas não importava, eu era viúvo outra vez. E os processos daquela menina não levariam a nada, meus próprios advogados me deram essa certeza, afinal, mortos não costumam ir a fóruns…

A fazenda Crescente estava abandonada fazia três anos. Pendências com o banco fizeram os antigos donos perderem a mesma, o que a levou ao leilão que venci.

A porteira, fechada com corrente e cadeado, me fez descer do carro. Barro e água entraram no meu sapato, molhando até a calça social. Eu precisava de roupas apropriadas…

Enquanto com as chaves, dezenas delas, eu tentava encontrar a correta para o cadeado, a luz do farol do Honda me iluminava. Os eucaliptos altivos, quase sem folhas, brancos nos caules finos, sentiam o vento, e na escuridão do bosque escutei algo, primeiro como um animal, rastejando além de onde eu conseguia enxergar, depois se aproximando, como passos humanos…

Minhas mãos tremeram, e lembrei da arma, uma 380, comprada do policial amigo…

O problema é que eu estava fora do carro, e a arma abaixo do assento do passageiro…

Respirei fundo olhando as árvores, e vi o caminho sem qualquer iluminação que levava de volta ao centro da cidade.

Acabei rindo do meu medo, era uma fazenda, por mais que os animais da mesma tivessem sido vendidos há anos, existiam muitos animais selvagens no bosque, até mesmo na cidade eram comuns macacos, lebres, veados, ouriços, cutias, e os rios não ficavam longe, até mesmo capivaras eram comuns por toda aquela região.

O cadeado abriu com uma das chaves antigas, a prata havia até mesmo enegrecido. Abri a porteira somente soltando a mesma. E de volta no carro, com os vidros embaçados, abaixei e peguei a 380, só para garantir. Ainda com a porta, do lado do motorista aberta, vi ela ali, a menina parada, tão próxima que senti seu perfume, e o cheiro impregnado nela.

Pensei por por instantes que havia enlouquecido, ou que aquilo era alguma punição divina…

Organizando os pensamentos, reparei nas roupas dela, na verdade, no vestido, amarelo, com flores pintadas em verde e vermelho descendo dos ombros até perto dos joelhos. Uma escolha, um tanto quanto, alegre para um fantasma. Eu ainda estava segurando a arma quando escutei outros sons vindos de entre os eucaliptos.

“Quem é você?”

Acho que eu estava paralisado de medo. Foi a criança quem perguntou.

“E você?”

Balbuciei. Eu estava suando de medo. Ao menos até olhar diretamente para ela. Olhos castanhos, cabelo escuro, quase preto, um rosto bonito, nem especial, nem não esperado. Uma criança normal.

“Eliz. Você mora aqui?”

“Moro. Onde você mora criança?”

“Na cidade, meu irmão e os amigos acampam aqui.”

Antes que eu pudesse questionar qualquer outra coisa, na janela, do lado do passageiro, duas mãos tinham um rosto curioso entre elas. O irmão da menina, que era mais velho, devendo ter uns quatorze anos, nos observava.

“É ele. E aquele é o Henry, e aquele o Marciel. Eles me pegam aqui no mato… As vezes…”

A menina tinha um perfume natural nos cabelos longos, esses, lisos, descendo até perto dos joelhos, mas, ainda assim, o cheiro de porra no vestido era algo que se sobressaía.

Marciel e Henry eram dois negros, um pouco mais velhos que o irmão da Eliz, pareciam ter chego aos dezoito. Eram fortes, e um deles estava sem as calças. Quando os pretos me viram, imediatamente, correram de volta para o bosque.

O irmão era menos cauteloso, gritou com a menina:

“Vem, vamos para casa! Ou vou contar para o pai que você ficou falando com estranhos.”

“Não vou, vou ver a casa grande por dentro.”

Eliz me olhou, como que esperando uma confirmação minha. Suspirei, e ri de novo, a situação era completamente absurda. Falei quando recobrei o controle, deixando de tremer, e escondendo a arma:

“Se ela quiser ficar, vai ficar, e se você contar para alguém, falo para cidade inteira sobre os negros que foderam ela. E que o irmão, olha só, ajudou nessa merda…”

O moleque deu a volta no carro, e cheio da razão, falou com a voz elevada:

“Você não sabe de nada, é você que está querendo comer ela…”

“Mentira! Você é o que mais me fode!”

A voz de Eliz gritando soou alta o suficiente para fazer alguns corvos voarem das árvores distantes.

Aquilo me surpreendeu. E ao garoto também, com o rosto corado ele fechou as mãos, e se aproximou, talvez pensando em acertar a irmã. Só parou quando sentiu o cano da arma no meio da testa. Sai do carro e ele começou a chorar:

“Escuta aqui fedelho do caralho. Você nunca mais vai encostar um dedo na tua irmã! Nem você, e nem aqueles lixos que estavam com você, entendeu? Ou eu vou espalhar a sua cabeça estourada por essa fazenda inteira!”

Ele me olhou com raiva. E eu dei um tiro, para errar mesmo, mas bem perto da cabeça dele, acertando o chão. O som da arma, a pólvora branca como nuvem nos envolvendo, o clarão do disparo, tudo moldou o rosto do garoto na mais profunda expressão de medo que já testemunhei.

Com ele chorando o chutei na boca. Sangrando nos dentes e no nariz, o menino tentou correr. O segurei, e enquanto eu gritava para ele se desculpar, dando com a arma de ferro na altura de seus ombros, pescoço, e nuca, escutei o mesmo horrorizado implorar por perdão. Quando o soltei, ele se arrastou no barro, e, sem olhar para trás, desapareceu como tinha chego…

Naquela noite Eliz tomou banho na casa grande, que exploramos juntos. Ainda existiam móveis antigos no lugar, coisas que os antigos donos não se importaram de perder. Tudo era madeira, em três andares, chão, teto, decoração. Uma mansão isolada, e se não fosse pela criança, me visitando todos os dias naquele mês, talvez eu tivesse aceito a solidão como pena de morte.

Com o tempo, funcionários para reparos na rede elétrica, internet, encanamento, jardins, e, principalmente, marceneiros, se tornaram comuns, entrando e saindo da casa grande.

Nos nossos encontros, sempre inesperados, Eliz me contou que faria dez anos em breve, e que o irmão e os amigos dele, seis ao todo, revezavam fodendo ela desde os sete anos de idade. Contudo, desde meu susto, os abusos haviam parado de vez.

Levou três meses para finalmente os sons de arrumação cessarem. A casa estava mobiliada com minhas preferências, e as empregadas da casa vinham duas vezes por semana, segunda e terça, o jardineiro vinha nas quartas, e até mesmo o mercado passou a entregar naquele ponto mais distante de Três Moinhos.

Somente ali reparei que o que eu mais ansiava eram as conversas com aquela pequena flor. E mesmo cercado pela mais bela natureza, eu só tinha olhos para aquela delicada pétala. Ansiedade, medo, e aflição, eram comuns ao meu coração, até aquela noite…

Era lua cheia, e Eliz, no meio da noite, me visitou. Temi pelo pior, uma recaída do irmão, ou vingança dos amigos do crápula, mas não, ela estava tranqüila, na varanda da casa, so me disse uma frase antes de eu a deixar entrar:

“Hoje é meu aniversário, e eu quero um presente… Algo que só você pode me dar…”

Olhando para o bosque pensei ter visto algo, um reflexo, azul, como os olhos de Vitória, minha segunda esposa…

Não, era impossível, não havia nada lá. Minha atenção voltou para dentro quando reparei em Eliz tirando as roupas, seguindo para o segundo andar…

Enfim tranquei a porta, e espiando pelas janelas busquei por vultos entre os eucaliptos. Nada vi…

Escutei o som da água enchendo a banheira no terceiro andar, e decidi me entregar ao amor pela terceira vez…

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3 Comentários

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  • Responder Lia ID:f7vsdjphj

    Um ótimo conto e também espero que tenha coisas como no primeiro

  • Responder Pacco Fulgore ID:g3iqa2u42

    Só espero que não pegue leve por causa dos comentários no outro. Gostei mais desse, mais detalhes e tal

  • Responder Homesick alien ID:81rqka7b09

    Muito bom o conto, espero que tenha elementos parecidos com do primeiro no site