Meu doce e amado Beto, sempre Ele, eternamente Ele

Fiquei deitado pensando, desde Sábado não me alimentava, tava sentindo fraqueza mas fome não tinha nenhuma, agora sede não me faltava, eu trocaria qq coisa por um copo de água naquela hora, meus pensamentos iam lá pra casa, pra casa de minha Mãe, sentia saudades de tudo, de Beto primeiro, de Luciano, das brincadeiras de Miguel e dos outros todos, fazia nem uma semana que tinham me tirado de lá e parecia que tinha se passado anos, por outro lado eu pensava, Vovô Aroeira, Luciano me esganando e me levando pra sua cama, aquele Paraíso em que eu estava com Beto há uns dez dias atrás, aqueles Homens lá na tal Hospedaria, nada disso deve ter existido, é coisa de minha cabeça de louco, eu fiquei doido mesmo.
Na hora do almoço, eu fiquei sentado lá fora, olhando os carneirinhos, os cavalos, os cabritos andando pelo terreiro, me dava uma paz aquilo, meu ‘pai’ depois foi prum dos muitos botecos que tinha naquele fim de mundo, me levou todo Sr de si com ele, Seu Dito e Naldinho tavam lá, estavam tb Tonico Rico, um rapaz acabado de lá que bebia mais que respirava e outros homens todos conhecidos, eu fiquei sentado entre a calçadinha e a rua de barro batido de cabeça baixa com um graveto fazendo desenhos no chão, eu forçava o braço fazendo isso, parecia que ele tremia menos, os homens falando eu escutava mas não dizia uma palavra, uma hora ouvi Seu Félix perguntando à meu ‘pai’, e o rapazinho como tá, mais calmo respondeu ele, já não agride mais ninguém, mas não tá bom ainda não, seu Benedito emendou, amanhã clareou o dia, vou fazer a sangria nele, enterrar no pè da gameleira o sangue, vai ficar lá na casa de rezas uns dias comigo, sai de lá bom de tudo, ah compadre Dito, se o Sr não curar, não tem quem cure completou Seu Félix, mas tenho dó do coitado sem comida e água esse tempo todo.
Ficaram lá bebendo, Tonico Rico já dormindo na cadeira, eu riscando o chão, olhando pros morros que tinha no povoado, era uma paisagem bonita de ver.
Eram umas 2 hs acho, se ouviu o barulho dum carro vindo pela estrada, quem será disse Naldinho, carro pequeno andando por estas bandas, coisa muito rara acontecer, eu levantei a cabeça, era um opala azul entrando na única rua que havia ali, era onde estávamos, o carro passou por nós, eu levantei um pouco a cabeça, na placa se lia, Aracaju – Se, seu Dito disse, quem será, automóvel próprio num lugar desse, gente de posses disse Naldinho, mas à frente vinha Setembrino, um rapaz de lá tb que ficava mais no bar do que em casa, o carro parou nele, disse alguma coisa e seguiu, nos outros bares e portas das casas, todo mundo olhando pro carro, era muito raro ver gente de fora ali.
Setembrino mal chegou na calçada, seu Félix lhe falou, quem é Setembrino, sei lá disse ele, um boyzão da porra, Tonico Rico ergueu um pouco a cabeça dizendo, eita que se tá vindo pra Festa de Nossa Senhora da Saúde, vai pegar as raparigas toda, sobra nada prá nós não.
Setembrino viu meu ‘pai’, ah o Sr tá aqui, é parente seu, só perguntou qual era a casa onde tava o homem que chegou com um mlk por estes dias de São Paulo, ó lá, já tá entrando no terreiro de Sinhá, meu ‘pai’ deu um pulo da cadeira e olhou, eu olhei tb, vi o carro parando na direção da porta da sala, olhei pro ‘pai’ os dois olhos eram duas brasas vermelhas, tava parado, não se via um músculo nesse se mexendo, eu olhei de novo, um rapaz tava de costas prá nós conversando com minha tia, tava de camisa polo vermelha, igual uma que eu dei pro Beto e ele gostava de usar, deve ser algum parente ou que veio prá assistir a castração pensei, olhei de novo já em pé, minha tia apontava prá onde nós estávamos, os ombros eram igual os do meu Beto, os cabelos tb, lembrei de minha mãe que sempre nos dizia, cuidem da cabeça meus filhos, corpo qq médico conserta, cabeça não, óbvio que não podia ser Ele, eu tinha endoidado mesmo, lá no terreiro ele se virou chamando eu ou meu ‘pai’ para ir lá, mesmo de longe eu vi o sorriso e pensei, não, esse sorriso loucura nenhuma podia fabricar, era o riso do meu doce Beto, fui bem devagarinho arrastando os chinelos no chão em direção à Ele, sabia que era impossível ser Ele mas queria manter aquela ilusão por uns instantes mais, quando eu cheguei na porteira, ele tava chegando tb, o rosto destruído pelo cansaço sorriu prá mim dizendo, é bebê, como diz Mestre Gonzagão, eu penei mas aqui cheguei, minhas pernas bambearam, segurei na cerca prá não cair, ele percebeu, veio me abraçar prá me apoiar em pé, me afastei dizendo, encosta em mim não Beto, tou sujo, muito sujo
Desde quando meu Beto seguia o que eu dizia, ele me abraçou assim mesmo, o xero dele era todo poeira e suor mas prá mim era o melhor perfume do mundo aquele, vim te buscar bebê, não sei como mas te tiro daqui inda hj me disse, minha tia vinha chegando até nós, eita que essa amizade é forte disse Ela, entre Rapaz, tem almoço, o Sr deve tar morrendo de fome, viagem até aqui é longa, entramos, da porta olhei prá trás, meu ‘pai’ parecia uma estátua, imóvel no mesmo lugar de antes, não acreditando que Beto estava ali.
Beto não quis comer, aceitou só café com cuscuz e requeijão, pediu uma bacia de água prá lavar o rosto e a cabeça, minha tia foi buscar, eu tava chorando mas de alegria, chora não bebê, não me lasquei até aqui prá te ver chorar não, me dá teu riso de mlk teimoso agora senão vou te meter porrada hen, ae eu ri, até dos tapas dele eu sentia saudades naqueles dias no inferno que eu estava, agora sim disse ele com os olhos fechando de sono, minha tia chegou com a bacia, ele mergulhou a cabeça toda na água, ela deu uma toalha à ele, não Dona, obrigado, vim buscar o mlk, a água me desperta um pouco, não durmo faz muitos dias, ele não pode sair daqui, tá se tratando dos nervos disse ela, mlk num é doido não Dona, podia até ter ficado mais não é falou Beto, é sim ela continuou, olha o bracinho dele, isso não é doidice não Dona falou ele, quando ele tem medo o braço dele treme mesmo, mlk tá doido não, o que ele tá é apavorado.
Onde tem um orelhão por aqui ele perguntou, ê meu filho, nem luz tem neste fim de mundo, que dirá telefone, só vai achar isso na cidade ela respondeu, onde é a cidade ele continuou, fica longe daqui disse ela, de caminhão leva umas 4 hs, tem estrada não, é só pedra e buraco, durma, amanhã vc acha alguém que te leve, Setembrino te leva de bom grado, não respondeu Ele, tenho que ir agora, mlk vai comigo, sai de casa sábado à noite e não dei mais notícias, tá todo mundo preocupado lá em casa, com o lek e comigo também.
Vou chamar Setembrino lá no bar, ele te leva mas meu sobrinho o Pai não vai deixar ir não, Benedito vai curar ele amanhã com uma sangria, Beto conhecia a vida, sabia que minha tia não tinha nada a ver com a história e só falou, ele vai deixar ele ir sim Dona, não desgrudo desse lek um segundo nunca mais.
Minha tia foi chamar Setembrino, Beto viu meu lábio rachado, encheu um canecão de água, bebe bebê, tá com a boca seca, tou de jejum falei, manda teu jejum prá casa do caraio, bebe, tou mandando, engoli a canecona num gole só, ele enxeu outra e me deu, tomei num gole de novo, agora chega disse ele, depois tu bebe mais, se tomar agora vai te fazer mal, desde quando tá de jejum, sábado eu disse, fdp esse véio, te deixar três dias assim, se eu pudesse matava o safado hj ainda, a hora dele chega.
Setembrino entrou com minha tia, disse que ia pegar uma muda de roupa e uns requeijão prá família e já voltava pra ir com a gente
Ficamos sentados esperando, Beto pegou meu ombro do jeito que só ele sabia fazer, deu uma virada, o estalo lá dentro saiu alto, a dor parou no ato, a tremição tb diminuiu, minha tia olhou ele espantada, só Deus sabe o que esse menino passou esses dias minha Senhora ele disse à ela, perguntou se eu queria comer, respondi que não, só tinha sede, daqui duas hs cê volta a beber normal teimoso, não confia maia em mim não é, se eu já confiava antes que dirá agora, não era mais pesadelo, era um sonho que eu tava vivendo, dava até medo de acordar e sair dele
Setembrino chegou cheio de sacolas, Beto mandou eu pegar minhas coisas todas, agradeceu à minha Tia pela recepção dada à Ele, mas vcs voltam aqui né perguntou ela, voltamos prá deixar Setembrino aqui, tb prá ir pra Aracaju acho que temos que passar por aqui mesmo.
Dei um beijo nela e minha vó, tinha gostado daquela velhinha, conversado muito com ela, na porta do bar Beto parou o carro, de dentro mesmo falou alto, boa tarde pessoal, uns e outros ae pensem muito bem antes de pisar em SP algum dia, eu nem olhei pro bar, não queria ver ninguém.

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