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Eu não te amo

1551 palavras | 6 |3.57
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Lembranças e reflexão sentimental de quem viveu algo singular.

Está chegando o Natal. Eu nunca escrevi uma linha sobre isso, apesar das borbulhas que durante todos esses anos os pensamentos me causaram. Mas está perto de completar uma década; 10 anos que eu não te vejo, 10 anos que você não me vê.

Sabe… nem por um dia sequer eu deixei de me lembrar; não por falta de tentativa. Houve muitos daqueles dias cheios, em que as trivialidades tomam a nossa mente por completo… Mas mesmo nesses dias, eu não escapei. Pega de surpresa num banho morno, ou minutos antes do sono chegar, na cama… Bastava, ou melhor, basta qualquer brecha… uma mínima inflexão do tempo, para que a lembrança de um ato, uma fala, um olhar, uma fragrância… perfure-me.

Antes, apenas um lapso de lembrança era o suficiente para levar, instantaneamente, meus olhos a umedecer e de ódio meu coração se inundar; isso não acontece mais. Restam-me apenas os pensamentos, os questionamentos… a mágoa. É isso que o tempo faz: tudo esmaece e nada apaga.

Mas talvez, de onde você estiver, ainda consiga se lembrar de como o Natal me excitava. Mal novembro principiava e eu já estava insistindo para que fôssemos em busca daquela caixa enorme e vermelha que abrigava tanta magia… toda a nossa decoração. Era tão pesada… e você deixava que eu apoiasse a mão, alimentava a minha mágica ilusão de contribuir com tudo. Como era incrível quando a faca rasgava a fita e ela se abria no meio da sala. As bolas coloridas, os galhos verdes da árvore… Tanta coisa para montar, tanta coisa para brincar.

Quando a árvore ultrapassava o meu tamanho, você me carregava para que eu pudesse terminar de decorar a parte superior. Por fim… a estrela! Era sempre eu que a colocava, direto dos teus braços. Depois, passávamos horas admirando todas aquelas luzes que não paravam de piscar. Tudo terminava em um beijo (que, meus Deus! ainda era tão puro…) no escuro, entre luzes, para coroar o nosso árduo trabalho.

Mas é verdade que toda essa excitação já morreu. Se você pudesse saber, talvez ficaria surpreso em descobrir que não há sequer um enfeite dessa data em minha casa, hoje. Eu não suportaria. Já me basta os vizinhos, as ruas, tudo! Tudo me remete, tudo me acossa; as árvores, as luzes, as cores… todas as coisas me penetram, todas me ferem. Sim, aquele momento que antes eu ansiava por todo o ano, é período de profunda melancolia, hoje.
Diante de tudo que você me tirou, pode parecer engraçado reclamar isso; mas é que para as outras, secou-me todas as lágrimas.

Sabe… Por que você me amou? Não! perdão, isso jamais aconteceu de verdade, deixe-me corrigir: por que fez com que eu te amasse? Como teve a coragem de estar comigo nos momentos que marcariam a minha vida, de plantar as sementes das lembranças em meu coração?! Por que você sentava para brincar comigo?! Por que cuidava tão bem dos machucados que as brincadeiras me proporcionavam?! Por que cortava a carne pra mim quando eu tinha preguiça?! Por que deixava eu dormir sem tomar banho?! Por que me comprava todas as porcarias que eu pedia?! Por que nunca levantou a mão para mim?! Por que isso tudo? Apenas para depois ter, você mesmo, o deleite de me machucar?

Antes não tivesse dissimulado. Antes tivesse me tratado como o lixo que eu sei que você sempre achou que eu fosse. Se não me enganasse, se não me confundisse, se não me induzisse ao pecado de gostar do sabor da maçã antes de saber que ela implicava o banimento do paraíso que é a inocência… teria me ferido menos. As coisas que você fez com meu corpo… elas me machucaram menos. Você me ensinou a não respeitá-lo e eu, infelizmente, aprendi. Mas enquanto me tocava, nos momentos que decidia por macular o meu físico, dizia: “Eu te amo”. Olhava em meus olhos e cuspia palavras que confundiam a minha mente. Sim, hoje eu sei que aquilo não era amor.

Sei também que tudo devia fazer parte de seus desejos maldosos. Eu aprendi que alguns querem apenas saciar suas vontades e que, para isso, usarão das outras pessoas como quem usa um objeto, ignorando por completo os seus sentimentos. Mas eu aprendi, também, que há outros que só se satisfazem se perceberem estarem brincando com os sentimentos alheios, destruindo o que há de belo e puro em outro ser. E sim, esse é você.

Saiba, no entanto, que preferiria ter tido a brutalidade escancarada em meu rosto, ter me esquivado de qualquer alienação; ter percebido, o mais cedo possível, aquilo que o acaso me reservou. Preferiria ter me livrado de todas as falsidades, de todos os beijos que hoje sei repugnantes, de todas as carícias cínicas que faziam o meu corpo arder, depois. Eu preferiria que em um de nossos incontáveis passeios, você tivesse desviado o carro e me levado para qualquer lugar esmo; que ali descontasse toda brutalidade contida, toda a maldade que eu ainda não conhecia, de uma só vez… e que me fizesse apenas um número. Pelo menos assim evitaria a pior das dores: a que se prolonga. Eu só preferiria não ter sido enganada. E se chego a preferir tudo isso, é porque você conseguiu o que queria: ser ainda pior. Mas se não fosse assim, você não estaria satisfeito. Eu sei.

Sabe… às vezes as minhas colegas de trabalho comentam, aos risos, sobre seus períodos de juventude. O primeiro namorado, o primeiro beijo, as fugas… o primeiro amor. Quando esse assunto principia, eu dou um jeito de escapar; invento uma sede, peço licença. Eu não tenho sede, mas realmente vou até a água e a bebo para me acalmar. O copo plástico balançando em uma mão trêmula… coisas que ninguém poderia entender. Mas vou até a janela, fecho os olhos, respiro fundo; passa. Todas essas experiências você me roubou e, no lugar, plantou a mais pura dor.

As pessoas me diziam: “você é tão inteligente, e a mais bonita daqui. Por que não namora?”, “por que és tão tímida?”. Especulavam sobre a minha sexualidade, me perguntavam coisas que eu não podia responder. Eu mentia, gaguejava e depois, fora do alcance delas, eu chorava. Para evitar mais questionamentos, passei a me dizer comprometida e desviar do assunto. Eu até comprei uma aliança… mas que não tem par. Descobri que assim as pessoas perguntam ainda menos. Para mim é impossível qualquer tipo de relação. Um mérito seu.

Antes de finalmente acabar, em minha plena adolescência, por vezes chorei até dormir. Experiência singular. Quando choramos por muito tempo, ficamos cansados, fracos… Daí o sono. Mas o pior é quando acordamos. Todos já devem ter acordado para um dia que resguardava algo muito bom. Após os primeiros segundos do despertar, lembramos disso e ficamos alegres; mas o contrário também é possível. E por tantas vezes vivi… Acordava e a minha mente ainda estava límpida, em estado neutro, mas bastavam alguns segundos para sentir as lágrimas que dormiram grudadas em minha pele e ser bombardeada pela lembrança da realidade que me aguardava.

Nessa época, já me surgia pela cabeça contar. Mas era tudo tão difícil, sabe. A confusão de sentimentos, o receio, as dúvidas. Com a minha idade, eu não conseguia assimilar, por mais que tentasse. Mas o acaso tratou do desfecho.

Quando eu soube para onde iriam te levar, eu ainda tentei impedir, mas você não soube disso. Eu tenho vergonha de ter tentado, eu estava confusa. Saiu uma ou duas notícias discretas, na época. Mas o seu nome não constava nelas, acho que, com sua influência, conseguiu evitar. Eu não te odeio, não mais. Eu só não entendo, e nunca entenderei por que você decidiu assim. Um dia, uma menina judia escreveu: “o amor não é coisa que se possa pedir a alguém”. Eu concordo. Você não precisava me amar, bastava me ignorar. Seria ruim, mas incomparavelmente menos do que foi.

Há uma taça de vinho na mesa. Distante, pela minha janela, vejo outra janela, e ela está decorada. As luzes piscam e atingem em cheio a minha pupila dentro desse quarto escuro. É madrugada e eles não desligam, assim como era em minha infância. Eu sei quem são. Encontro-os às vezes. Três pessoas, uma família. Sempre parecem felizes. Essa é uma das poucas coisas que me conforta. Ainda que eu esteja privada, é tão extraordinário saber que há pessoas experimentando a felicidade e o amor… Há alguém, nesse exato momento, com o coração repleto de ternura; há alguém que respira fundo e ama o fato de que ela está viva.

Preciso parar. Os meus olhos estão turvos.
Por fim, seja lá onde estiver, por favor, saiba: eu não te amo, pai.

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6 Comentários

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  • Responder Gilberto ID:4adefqgifia

    Infelizmente isso aconteceu com você e espero que tenha se recuperado e formado uma família

  • Responder Jacinto Leite Aquino Rego ID:19p3wwt0j

    Putz, em vez de bater uma e gozar, fiz é chorar pra caralho!

  • Responder Nop ID:45xxp0l1k09

    Fique bem ! Tudo dará certo !

  • Responder Pauzudo 19cm 24 anos ID:ona04j4v9j

    Você não deve odiar, você deve amar seu pai que te fez mulher, você deve seguir sua vida e procurar outro homem pra te fazer se sentir bem novamente, esses sentimentos são a falta do que um dia ja teve, faça uma família e vai dar tudo certo pra você, uma mulher so está completa quando tem um homem fazendo o que quer com ela

  • Responder Rafaella ID:gsudr86i9

    Wow !! Que desabafo !! Beijos Angel !!

  • Responder Transboy ID:xlp08b0j

    Sinto muito 💔